Sobre Kwame Copperfield… Ou sobre o impacto do detetive de mim.
Um escritor espanhol que eu gosto muito, Jorge Larrosa, escreveu um texto muito famoso para o campo da Educação intitulado “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”. Nele o autor nos convida a pensar que as palavras nos ajuda a dar sentido ao que somos. E por isso mesmo eu amo tanto o RPG, pois, jogar com as palavras (o autor fala sobre isso!), me ajuda a dar sentido ao que sou e ao que somos.
Quando Silvia e Pedro me convidaram para compor o elenco de Skyfall, eu fiquei super feliz. Conversamos anteriormente sobre a complexidade e profundidade do cenário, assim como percebo em Skyfall um convite para refletir sobre a nossa existência. E logo, fui pensar um pouco… Afinal, qual face deveria apresentar para uma mesa que sempre foi jogada com tanta profundidade? Assisti o ultimo episódio da campanha de 3 Portas e me lembro das conversas que tive com o Pedro quando joguei o cenário dele, em 2019 (eu acho). Existia uma possibilidade muito ampla de fugir de conceitos já experimentado em outras mesas de RPG.
Quem viu a live de concepção do Kwame se lembra bem das minhas ideias. Os personagens de livros que estou lendo ou li: Thyador Borlú, protagonista do livro “A Cidade e a Cidade” do meu ídolo China Miéville, Mário Conte, personagem da série “Estações Havana” do escritor cubano Leonardo Padura, Sherlock Holmes do grande Conan Doyle… Ou ainda meus investigadores favoritos: Axel Foley e Chandler Jarrel, ambos interpretados por Eddie Murphy. Sem esquecer a face mais cativante do Cavaleiro das Trevas e Ash o detetive do episódio “A Detective Story” da animação Animatrix (aliás, episódio dirigido por Shinichiro Watanabe).
Todos os personagens citados, cada um em seu tempo, forma e ritmo, são grandes investigadores, prezam pelo raciocínio, pelo detalhe, pela estratégia e em várias oportunidade a resolução (nem sempre com sucesso) pela não violência. Queria um personagem que explorasse a lógica, o raciocínio, que recorre aquilo que Carlo Guinzburg chama de Paradigma Indiciário. Eu conseguiria unir coisas, dar intencionalidade, dar sentido as palavras enquanto falava. Mas essa é apenas uma face do personagem.
Nos últimos dias várias pessoas me chamaram ou comentaram em redes coisas sobre o personagem e nesse momento acho importante salientar algumas noções, para que as entendam: Se em toda mesa eu sou amplamente intencional com as escolhas, falas, aqui não seria diferente. Ou seja, Kwame é certamente o personagem que eu mais tento carregar de intencionalidades, em diálogo com a proposta de Skyfall.
Não sou eu que estou dizendo, mas Silvia e Pedro falam isso sempre. Skyfall nunca foi sobre heróis… Pedro e Sil chamam atenção para algo importante: Skyfall é sobre um mundo que está prestes a acabar.
Quando pensei em um detetive nesse lugar, pensei nesse cenário e mais ainda: pensei na melancolia do personagem e pensar, falar, agira levando em consideração a morte não é algo simples, assim, eu entro em algo que noto sobre algumas leituras de algumas pessoas que acompanham a minha participação: “O Kwame é muito lento, dá agonia acompanhar a fala dele.”
Antes de responder essa observação, cabe aqui dizer algo. Falei sobre intencionalidade, certo?
Parto do principio de que ser um investigador precisa ter algumas características e me desculpem caros críticos, mas o ideal do jogador macho alfa no microfone não é a minha característica de jogador e muito menos a de Kwame. Parto do pressuposto daquilo que imagino sendo algo importante para quem quer ser um bom investigador: o rigor da análise, o olhar criterioso de quem busca o menor detalhe, aquilo que escapa dos menos atentos. E o mais importante, a investigação pressupõe aquele que sabe realizar uma boa pergunta. E acho que a pressa nesse caso é a grande inimiga de Kwame.
A melancolia de um M’Bo é intimamente ligada a morte. E Kwame é alguém que pensei como alguém que estuda, investiga a morte! Quem ficou atento a conversa com Jack, sobre o grande massacre na formatura, notou que isso é algo que interessa, mas não a morte deslocada da realidade. Kwame se interessa com a morte como etapa da vida, enquanto possibilidade de comunicação com quem se foi, para tentar entender essa vida perto do fim, como se ajudasse adiar o fim do mundo (obrigado Ailton Krenak).
Pensar em Kwame, pensar no detetive com a pegada noir é pensar em alguém que vai navegar entre o intimista, o ritmo lento (e por vezes irritante para quem não está disposto a viver algo diferente) é a premissa do personagem, mas penso que existem outros tantos elementos, que conjugado a essa ideia, me parece importante salientar, não só pra quem “não aguenta ouvir o personagem” mas para quem está disposto a ouvir e dialogar (em alguma medida) com o personagem.
O ponto de partida é o nome do personagem. Acho triste ter que explicar isso (na real, uma parte minha está triste em escrever esse texto), mas a inspiração são personagens importantes para a cultura e para a História: Kwame Nkrumah, Kwame Anthony Appiah e Kwame Ture. A escolha não é aleatória, afinal, trouxe um nome de três almas que carregam em suas mãos todos os sentimentos do mundo e sendo pessoas com trajetórias que do ponto de vista das reflexões atuais se aproximam (e distanciam) bastante e me ajudam a pensar no que é ser um filho de pessoas sequestradas de sua própria terra e que na condição de eterno investigador busco conhecer melhor quem sou.
Outro ponto importante — que dialoga bastante com o que disse anteriormente — está no incômodo sobre a pretensa lentidão de Kwame. Vejam, não só o personagem, mas também quem o interpreta carrega essa característica, esse jeito de se expressar no mundo: observador, contemplativo, errático, “lento” (como alguns disseram). Mano Brown chama atenção em Negro Drama e modestamente, gosto de pensar assim:
“Atrasado, eu tô um pouco sim, tô, eu acho
Só que tem que
Seu jogo é sujo e eu não me encaixo
Eu sou problema de montão, de Carnaval a Carnaval
Eu vim da selva, sou leão, sou demais pro seu quintal”
“Atrasado”. Como Cartola que mesmo sendo gênio foi reconhecido somente na velhice (entre seus pares sempre foi diferente). “Lento”. Como Didi foi acusado por Di Stefano quando jogaram juntos no Real Madrid. “Errático” como algumas pessoas (sempre as redes sociais) acusavam Itamar Assumpção, na sua forma de expressar. Assumo tudo que me constrói como ser humano e mais do que isso me orgulho de carregar características que noto em meus ancestrais, contudo repito, características, não me definem. Já que seguimos falando de vida e morte, antes de encerrar, um dos meus aprendizados no contato com as tradições de matriz africanas e afro-brasileiras é o respeito aos mais velhos.
Caso não perceberam, existem informações sobre o que é e quem é Kwame no desenho do Cirino. O cachimbo é símbolo de sabedoria entre os mais velhos, símbolo daqueles que em várias oportunidades me dão conselhos sobre a vida e sobre a morte, que me ajudam a tecer a trama desse lugar tão hostil e ao mesmo tempo tão amoroso. Aliás, essa mesma espiritualidade me ensina muito sobre os nossos, seus ritmos, seus corpos, suas possibilidades e contradições.
A tatuagem e o símbolo da família de Kwame também dizem muito sobre o que eu penso, inclusive enquanto investigação espiritual, identidade e ancestralidade. O arco e a flecha não são somente uma arma, são instrumentos que carregam sentidos e significados muito complexos, algo muito além do que uma observação em um vídeo dariam conta de notar. Essas, com todo carinho, pertencem a minha intimidade, mas se prestarem atenção na forma como me expresso, as perguntas que faço estão ali.
Sempre serei grato ao carinho dessa comunidade, fui abraçado com muito carinho, mas confesso também que ver que em todas as minhas participações da mesa do Youtube existe pelo menos uma observação negativa machuca. E não são observações sobre o que eu digo, são observações que tentam dar conta do que eu sou. E aí lanço de novo, o trecho do Pantera Negra no Arco “Vingadores do Novo Mundo”. É a conversa do Rei T’Challa com o Dr. Franklin:
“Os nomes que essa gente nos dá… como se nos conhecessem, ou aos nossos feitos, melhor do que nossos pais. São pessoas sem imaginação, Dr. Franklin. Para eles, somos apenas sombras de sua própria glória, nunca nós mesmos. Belos e originais. Não há nada de original em ser ‘Bruce Banner negro’ as prisões estão cheias de Bruce Banners Negros. Imagino que saiba.”
Eu sei que a grande maioria das pessoas que acompanham Skyfall, essa galera que eu digo que é doida demais sempre me apoiou, sempre deixou carinho, sempre me tratou com amor. Mas, é impossível negar que desde a minha primeira participação noto algumas observações que tentam definir o que eu sou. Então, a essas pessoas que tentam me definir deixo meu agradecimento. Se todas as pessoas que gostam do que eu como parte desse elenco lindo me lembram que o caminho a ser seguido é esse, aqueles que me chamam de “lento”, que dizem que aumentam a velocidade durante as minhas falas me lembram do que eu sou. Nesse sentido agradeço aos ancestrais. Pelas diferentes velocidades do sincopado do samba, que sempre nos guiam aos ancestrais. Agradeço a tudo aquilo que os ancestrais me ensinam e que por vezes me esqueço. Confesso que cada passo que dou nesse planeta, cada frase, cada reflexão, não faço isso sozinho.
Não preciso explicar muita coisa, mas com Kwame faço um caminho que determinei: Sou um investigador de mim, sou um investigador do meu tempo. Sigo pistas, sinais, fragmentos que possam ajudar a entender toda essa vida. Contudo, sei muito bem que não ando só. Deixo finalmente a reflexão de Milton Nascimento, que resume muito bem esse (pretenso) flanar.
Milton Nascimento: “Caçador de Mim”
“Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu, caçador de mimPreso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mimNada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo, medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir às armadilhas da mata escuraLonge se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir o que me faz sentir
Eu, caçador de mim[…]