Minha cabeça talvez faça as pazes assim…
Dedicado ao meu camaradinha silencioso e discreto, Boris Fausto.
Imagem 1.
1990. Uma atividade de escola. Eu desenho a camisa da seleção que jogaria a copa na Itália naquele ano. A frase, de minha autoria, do alto dos meus 7 anos era simples: essa é a camisa da seleção brasileira.
Imagem 2.
1991. Estamos na sala da casa da tia Cá. Meus olhos de encanto assistem um homem de 50 anos arrancando pelo meio de campo. Não me esqueço. O Rei Sai, entra Neto. Eu choro.
Futebol também é afeto. Sensibilidade. E aqui preciso dizer, não quero tomar o afeto como algo positivo. Lima Barreto está certo, afinal, em alguma medida, o futebol fez do corpo negro o lugar de sua subjugação.
Por isso as memórias são fortes, carregadas de afetos tão diversos. Essas, tem a possibilidade de nos emocionar, causar sentimentos completamente contraditórios. Mas, esses sentimentos, são construções sociais, políticas, econômicas.
Pensei em diferentes introduções para esse texto. Um modo de pensar no futebol e seu diálogo com a política brasileira? Talvez. O futebol e seu distanciamento das pessoas que vivem o futebol e a seleção brasileira? A elitização do futebol e seus traços? Ou meramente o insucesso da seleção nos ultimas edições da copa do mundo de futebol?
Apesar de meu amor incondicional pelo futebol, me distanciei da seleção brasileira por motivos diversos. A amarelinha foi sequestrada e aqui não falo de sua tomada por parte da direita brasileira. Falo dos diferentes interesses que passam a disputar sentidos ao futebol. Quem fala disso muito bem é o podcast “Sequestro da Amarelinha”. Não é meu interesse destrinchar o podcast, mas, simplesmente lembrar que meu distanciamento tem como único entendimento o futebol. Uma seleção, que mesmo em 2002, apostava em um estilo de jogo já questionável (nunca gostei de Felipão), mas ainda assim de muito sucesso. Mas, principalmente a partir de 2010, com a face de um grande jogador, mas um técnico de pensamento controverso, postura dura demais…
Apesar de meu rompimento ter sido com o time em campo, assumo que os (des)caminhos civis cantaram alto demais. Imagem da classe média alta e branca, trajando preto, enlutada em seus próprios privilégios e dona de um patriotismo ensimesmado, longe de nossa contraditória construção social. Sim, o movimento “Cansei” (cansou do quê cara pálida?) é um retrato desse patriotismo afeito a colunista branca que reclama de seu porteiro viajando para Nova Iorque (assim como um certo Chicago Boy). Não é atoa que o Cansei tem como criador o finado “político” (às aspas para um finado gestor) João Dória.
A seleção estava distante de seu público, diferente demais de sua torcida e enraizou-se na retidão de corpos e sensibilidades. Parece fazer sentido que o técnico dessa geração seja um homem que ergue uma taça xingando palavrões. Aqui, um parênteses: justiça seja feita, mas aquele momento é retrato de uma geração que foi taxada pela imprensa esportiva. Logo, o comportamento é sim compreensível (contém ironia).
No trecho a seguir Dunga apresenta seu ponto de vista. Contudo, é interessante pensar que diferente homens reagem de formas diferentes quando estão submetidos a pressão… pensemos em Barbosa, por exemplo, ea forma como mesmo reagiu às críticas injustas… mas, novamente, a postura de Dunga é compreensível (contém ironia…).
Os Anos se passam e o pior acontece. A mesma seleção que se afasta de uns, se aproxima de outros. Novos sentidos são dados a amarelinha. Dar novos sentidos a camisa é algo comum. Citei o podcast “Sequestro da Amarelinha” e lá os jornalistas envolvidos voltam no tempo para contar o motivo pelo qual as cores da seleção amarela são o amarelo e o azul.
Até a copa de 1950, a camisa era branca (aliás, a camisa minha camisa favorita), contudo, ocorreu uma tragédia no maior estádio do país naquele ano. Conforme vocês podem notar aqui:
Acreditaram que havia um peso nas cores brancas da camisa, logo, surge um concurso, bancado pela então CBD, para definir a nova cor da seleção brasileira. E segundo Jamil Chade e José Roberto de Toledo, quem vence o concurso é alguém que vivem nos limites entre Brasil e Uruguai. Mais ironia. E não sou eu. É a história mesmo que é irônica.
A escolha é essa: Camisa amarelo ouro, calção azul e meias brancas.
O ponto mais interessante nessa escolha está na camisa azul, que surge durante a copa de 1958. Na final daquela copa, jogada contra a grande seleção sueca (que também jogava de amarelo), o chefe da delegação, Paulo Machado de Carvalho, define que a cor da camisa numero 2 seria azul e em homenagem ao manto Nossa Senhora.
Obviamente estamos falando de uma pessoa que decide como vai acontecer, mas vejam como essas escolhas são permeadas de sentidos diversos. Aliás, a vitória nesse jogo é fruto de um jogo muito bem jogado, mas a história poderia ser outra e não seria absurdo… Afinal a geração sueca daquele momento era brilhante, com grande atletas jogando no Milan e na Inter de Milão, por exemplo. recomendo para quem gosta a reprise desse jogo.
Durante a ditadura civil militar brasileira o combate pela história seguiu no futebol. Uma copa com militares acompanhando de perto, o Rei do Galo perseguido pela ditadura brasileira, a Democracia Corinthiana… Se a vida política brasileira era disputada, não seria diferente com o futebol.
Contudo me parece importante lembrar que na década de 1980 disputamos as cores do país e a cor escolhida foi o amarelo. Vários nomes de diferentes setores entenderam a importância daquele momento. Interessante notar que a voz das diretas foi simplesmente uma das vozes que eu mais amava quando criança: Osmar Santos.
Até o Rei vestiu a camisa das diretas. É importante lembrar que ele foi convencido disso e quem conta essa história é o grande Ricardo Kotscho.
“Chico Buarque” álbum de 1984, (conhecido também como “vermelho) abre os trabalhos com um samba que amo. E que diz muito sobre aquele momento vivido nas ruas de muitas cidades brasileiras. Chico compreende muito bem o encontro entre futebol e a vida brasileira, basta uma olhada nesse samba “Pelas Tabelas”:
Ando com minha cabeça já pelas tabelas
Claro que ninguém se toca com minha aflição
Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela
Eu achei que era ela puxando um cordão
Oito horas e danço de blusa amarela
Minha cabeça talvez faça as pazes assim
Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas
Eu pensei que era ela voltando pra
Minha cabeça de noite batendo panelas
Provavelmente não deixa a cidade dormir
Quando vi um bocado de gente descendo as favelas
Eu achei que era o povo que vinha pedir
A cabeça do homem que olhava as favelas
Minha cabeça rolando no maracanã
Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas
Eu jurei que era ela que vinha chegando
(…)
Na atualidade perdemos algumas (muitas) coisas. E a maior derrota foi não entender o significado do futebol, ao contrário da direita que compreendeu muito bem como dialogar com o futebol e seus significados, não é a toa que o então presidente sempre estava fardado com camisas de clubes, não é a toa a identificação de seus seguidores com a camisa amarela. Mas, nos afastamos, abrimos mão desse símbolo. Preferimos o silencio do que a compreensão do futebol em um sentido dialético. Era mais fácil apontar o dedo e dizer que a CBF era corrupta do que dizer que deveríamos ocupar a Confederação Brasileira de Futebol, apoiar nomes com compromissos mais sérios do que Ricardo Teixeira, ou José Maria Marin.
Sejamos sinceros. Somos avessos a memória. Queremos romper com o passado, esquecendo o que aconteceu. Assim é mais fácil vestir uma camisa vermelha com o símbolo baseado no escudo da CBF com a foice e o martelo do que compreender o que foi (o que é) esse símbolo. Não queremos fazer as pazes com o passado. Queremos uma cisão e isso pressupõe o perigo do esquecimento. Nosso passado nos causa vergonha, por isso escondemos.
Pessoas próximas me diziam, após a eleição de Lula para o terceiro mandato: “não consigo usar a camisa da seleção brasileira.” Contudo, vivo a seleção desde criança, desde 1990. Mamãe fez um bolo com o símbolo da seleção pra mim. Eu assisti Brasil Suécia do lado do Brito, meu padrinho querido, do lado do meu pai.
Ouvia conversando com Tio Paulinho, meu pai, Tio Sérgio, histórias sobre a copa de 1970, ou sobre a derrota no Sarriá em 1982. Vi a seleção de amarelo vencendo a Suécia num jogo eletrizante, chorei com derrota de amarelo em 1990, contra Argentina. Não vi nenhuma camisa vermelha. Usamos a camisa branca até a copa de 1950. Entre homens e mulheres o traje é esse… Há nessa camisa memória de diferentes jogadores, alguns esquecidos, outros nem tanto.
Acho o Djonga entendeu bem o desafio posto. Seu discurso também é uma tentativa de disputar os significados da camisa e ele está ciente e disposto a entrar nessa arena.
Vale a pena uma olhada no que ele disse:
Bagulho é o seguinte mano, a camisa do Brasil foi apropriada, como vários símbolos que foram apropriados pela direita, pela extrema direita, como se fosse uma parada deles, tá ligado? E a camisa do Brasil é um símbolo pra muitas pessoas. Eu sei que tem muita galera da esquerda que não curte por causa de parada de simbolismo, que muitas coisas não combinam exatamente com a nossa luta.
Porém, mané, na periferia futebol, esporte, é uma parada muito importante, tá ligado? E pra periferia, a camisa da seleção significa vitória, significa exemplo, significa os jogadores ‘pretão’ que vestiram essa camisa e que trouxeram a gente até onde a gente [chegou] no futebol, tá ligado? Então assim, por isso que essa camisa nunca saiu da periferia, por isso que ela nunca vai sair e por isso que você pode se apropriar de qualquer parada, mas o que é da favela é da favela, o que é dos pretos é dos pretos, já era.
Tenho aprendido com Marc Bloch e Lucien Fevbre que a até a escrita da história é disputada. Parafraseando o livro de Fevbre, vivemos nossos combates pela história, estamos disputando sentidos, a história dessa camisa é feita de bons momentos, de momentos que temos vergonha, como foi o 8 de janeiro. Mas, se essa é a história atual, então podemos fazê-la diferente.
Aprendi com os chilenos que a memória não é feita somente de entidades e instituições governamentais. As pessoas parecem entender, em sua contradição, que é função de cada uma delas não esquecer do que aconteceu a partir do dia 11 de setembro de 1973.
Fiz as pazes com a seleção brasileira. Mas, faço questão de lembrar o peso que essa camisa tem, em sua trajetória história e disputas que prefiro sempre lembrar, do que recorrer a algo que não possui relação com o futebol. Memória e história são faces que não podemos negar. A disputa deve seguir. Pelo menos acredito nisso.