Cem anos de Barbosa: ou a possibilidade de estar em paz com a memória de um gênio

Luciano Jorge de Jesus
5 min readMar 28, 2024

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Moacyr Barbosa

Texto publicado originalmente no site do Observatório da Discriminação Racial do Futebol.

Parece impossível esquecer que ao pensar no futebol brasileiro as relações sociais, políticas e econômicas estão ainda muito próximas do (e no) futebol, reverberando ou pelo menos apontando para quais narrativas e ações merecem receber visibilidade. E pensando no centenário de Moacyr Barbosa parece importante pensar em como alguns pontos de sua carreira brilhante viveram (e ainda vivem) sob a sombra do esquecimento.

Várias reflexões foram realizadas nos últimos anos apontando para a forma como o racismo sempre acompanhou Barbosa, taxado eternamente como “aquele goleiro do Maracanazo”. Todas essas narrativas são importantes para pensar no racismo brasileiro, em nossas relações cotidianas e principalmente para contribuir para a construção de várias e várias ações para o enfrentamento do racismo. Mas, uma face precisa ser enfrentada: aquela que silencia nossas trajetórias. Dizer que Barbosa foi o goleiro mais importante de sua geração não é um mero esforço retórico, é simplesmente o reconhecimento da trajetória de um gigante, de um homem que não marcou a própria vida pelas derrotas. Aliás, essa narrativa que se desdobra em assassinatos (de vidas, reputações e memórias) é mais uma face do racismo.

Crédito: Vasco notícias

Falar de Barbosa é falar de uma geração de atletas que tiveram parte de sua carreira prejudicada pela segunda guerra mundial. Afinal de contas, o maior jogador de futebol brasileiro, Zizinho (outro centenário que precisamos comemorar em 2021) não teve outras oportunidades de disputar outras copas do mundo. Mas dizer isso também é esquecer os feitos desses jogadores em seus clubes. Afinal, tivemos grandes equipes no futebol brasileiro (e na América do Sul) sendo formados entre as décadas de 1930 e 1940, e mesmo não havendo as copas do mundo na década de 40 várias competições, embates marcaram esse momento. E Barbosa é certamente um dos jogadores brilhantes dessa geração.

Barbosa fez parte do brilhante elenco cruzmaltino que recebeu o nome de “Expresso da Vitória”. Um esquadrão conhecido pelo amplo poder de ataque, pelas goleadas impressionantes e também por aquilo que Zizinho teria dito sobre o time do Vasco: era um time que não se intimidava mesmo em momentos difíceis. Barbosa chegou ao Vasco em 1945 e teve a oportunidade de compor esse grande time como goleiro titular em 1946. Nos títulos do campeonato carioca Barbosa é figura importante para a construção de cada um dos títulos. Aqui ainda cabe um adendo importante. A carreira do goleiro não começa em 1945. Existem momentos importantes anteriores, como goleiro do Ypiranga que merecem destaque, mas pelos menos aos olhos deste que escreve, esse momento da carreira é ainda um pouco misterioso e confesso a existência dessa lacuna.

ilustração de Alexandre Magalhães / @estacao15

No cenário da América do Sul, ainda com o Vasco, Barbosa é parte de um time que conseguiu se consagrar em um torneio de grande dificuldade. Vale lembrar que tanto Uruguai, Argentina, Chile e Colômbia eram bons centros e possuíam grandes jogadores. Assim o Sulamericano de 1948, vencido pelo “Expresso da Vitória” contra a “Máquina” do River Plate de Di Stefano e Labruna. Foi também um momento marcante devido a presença do goleiro nesse jogo. É um título importante pelo confronto contra grandes times do continente e sugerem a consolidação do clube (e porque não do futebol brasileiro?) como importantes para o futebol no continente.

Na seleção brasileira o arqueiro esteve presente em seu grupo desde 1945 e várias foram as partidas e títulos. Vamos lembrar algumas coisas importantes: jogar pela seleção brasileira sempre foi um desafio para jogadores negros, tanto pelo espaço dado aos atletas, quanto pelas observações que desdobravam em análises racistas. Basta lembrar como a briga com os húngaros na copa de 1954 e a derrota de 1950 são exemplos para análises de jogadores negros como irracionais, do comportamento violento, de serem incapazes do controle mental. Mas, mesmo depois da derrota em 1950, Barbosa seguiu como titular da seleção brasileira e só não esteve presente na Copa seguinte por conta de uma lesão. Ou seja, entre os pares, o reconhecimento de sua importância e seu talento certamente estiveram presentes.

Crédito: futbox

A reflexão que parece importante durante o centenário desse que é um dos maiores goleiros da história do futebol brasileiro está dentro e fora de campo. É injusta a narrativa que o coloca como alguém ligado à derrota, seja pela sua trajetória de grandes feitos, pelo modo como ele encarou a sua carreira com orgulho e carinho. Assim, me parece importante a construção de muitas narrativas sobre esse personagem, como outros tão importantes para a história da cultura brasileira. Uma face do racismo sempre tentou colocar o jogador no lugar de vítima de sua derrota, como coadjuvante de sua própria existência, o que não é verdade. Nesse sentido, somente a valorização da memória do jogador nos ajuda a enfrentar essa narrativa.

Outra reflexão importante, inspirada nas reflexões do Professor Marcos Queiroz é pensar na forma como o futebol está intimamente ligado aos elementos sociais, econômicos e políticos de nosso país. Afinal, os elementos raciais são fundamentais para entender a forma como a carreira de Barbosa, mesmo vitoriosa, foi prejudicada pelo racismo. E nesse sentido, e novamente em diálogo com o amigo Marcos Queiroz, cabe refletir inclusive sobre a forma como a derrota no Maracanã nos ajuda a construir o cenário da vida brasileira naquele momento e inspira pensar em nossa atualidade. Afinal, qual a importância de cartolas, políticos e imprensa esportiva para a construção de um cenário de pressão contra atletas? Essas narrativas possuem a sua face no racismo, no modo como pessoas negras eram notadas naquele momento e ainda seguem presentes em nosso cotidiano.

Celebrar o centenário de Moacyr Barbosa é em grande medida celebrar as conquistas de uma lenda do futebol brasileiro, é celebrar as contribuições do povo negro na cultura brasileira e também a nossa própria resistência.

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Written by Luciano Jorge de Jesus

Investigando os (alguns) fragmentos de conflitos no planeta Terra

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